Projeto de lei da Alesp tenta ressuscitar o decreto da segregação

Acaba de passar pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia Legislativa de São Paulo o Projeto de Lei 732/2020, que pretende instituir o “Programa de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. O Parecer da CCJR foi publicado em 14 de fevereiro. Por mais cativante que pareça o título do projeto, suas diretrizes são tão segregadoras que não seria exagero nenhum chamá-lo de “Programa da Eugenia”.

Jcomp/Freepik

O PL da deputada Valéria Bolsonaro (PL) é uma cópia, linha por linha, do Decreto 10.502/2020, proposto pelo então presidente Jair Bolsonaro. Aquele decreto foi matéria de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.590/DF) apresentada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e teve a suspensão da sua eficácia anunciada pelo STF. Além da referida ADI, o decreto também foi contestado em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 751), ação extinta devido a revogação de seu objeto pelo presidente Lula.

Com razão, o ministro relator da ADI que suspendeu o Decreto 10.502/2020, Dias Toffoli, manifestou em seu voto que “o paradigma da educação inclusiva, portanto, é o resultado de um processo de conquistas sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência ou necessidades especiais para inseri-las no contexto da comunidade”.

Ambos os textos, ou melhor, o texto compartilhado por ambos os instrumentos é, em natureza, uma proposta de criação de salas e escolas segregadas para estudantes com deficiência. As chamadas “escolas especializadas” substituiriam o modelo de educação inclusiva consagrado por tratados, leis e pela Constituição de 1988.

Não faltam exemplos normativos que definem a educação inclusiva como sendo não apenas a melhor opção, mas também como a eleita para o sistema educacional brasileiro. Já em 1994, a Assembleia Geral da ONU aprovou o texto da Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, que assertivamente assinalou que a “educação inclusiva é o modo mais eficaz para construção de solidariedade entre crianças com necessidades educacionais especiais e seus colegas”. Ainda sobre o assunto, a Lei Brasileira de Inclusão  em seu artigo 80, inciso I, institui: “sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”;

Também em matéria constitucional, o artigo 24 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, primeiro tratado internacional internalizado a partir de rito especial e consagrado com força de Emenda Constitucional, estipula, sobre o direito à educação: “2. Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que: a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;”.

Havendo tantas referências ao assunto na legislação e literatura, é de se surpreender o parecer positivo do projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. No mínimo, advoga contra o órgão e põe em suspeita a competência de sua atuação.

É óbvio que a linguagem eufemística da PL enganaria alguns olhares incautos. O uso de termos como “inclusiva” ou “especial”, no entanto, não são o bastante para que o conteúdo completo do texto manifeste o significado de tais termos em totalidade. As intenções de uma pretendente norma podem ser vistas nas atitudes de seus proponentes.

“O que acontece na sala de aula: você tem um garoto muito bom, você pode colocar na sala com melhores. Você tem um garoto muito atrasado, você faz a mesma coisa. O pessoal acha que juntando tudo, vai dar certo. Não vai dar certo. A tendência é todo mundo ir na esteira daquele com menor inteligência. Nivela por baixo. É esse o espírito que existe no Brasil”, disse o então presidente Bolsonaro, contestando a suspeição do Decreto 10.502/2020 pelo STF.

Tanto os incisos VI quanto o VII do artigo 3º da PL, que definem em termos o que seriam essas escolas e classes especializadas, escondem sua perspectiva segregadora, presente nos discursos dos que a proporiam, em linguagem cifrada por utilitarismos. Aqui, a eugenia dá espaço à eficiência fordista da educação, à especialização de profissionais que tratem exclusivamente de crianças com necessidades específicas, mesmo que isso signifique comprometer completamente a sociabilidade desses estudantes.

A ousadia de ressuscitar um projeto enterrado sob enorme controvérsia é exemplar, e deve ser tratada com o repúdio devido. Só esperemos que a Comissão de Educação e Cultura cumpra o dever que a Comissão de Constituição e Justiça falhou miseravelmente em cumprir: remover a eugenia da pauta parlamentar.

Fonte: Conjur

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